sexta-feira, 13 de julho de 2012

Kafka às avessas

Sempre que acordo depois de um sonho em que voo, o despertador do tic-tac me soa absurdo; O anúncio da manhã vira um horror e o tic-tac do relógio de ponto também aterroriza meus cantos escuros ainda dormentes. Será nossa alma apenas um simulador de voo?

A existência como absurdo;

Esses dias um amigo falou: “Existir é um fato um tanto estranho”. Me pego no papel de mim mesmo e vislumbro o cerne disso.

O melhor pedaço de nossa existência pode ser colocado numa folha de papel, em uma página. Somos alferes das coisas esquisitas; A literatura que o diga.

A literatura é um diálogo de vozes. Da viagem da voz de um autor e seus personagens até o nosso íntimo, que reitera e renova essa conversação.

Kafka, um autor dos mais criativos, foi um homem que bebeu na fonte da esquisitice e ergueu uma obra literária monumental. Mais do que esquisitice, o que ele fez foi dar forma ao que chamamos de absurdo.

O realismo mágico metafísico, uma das definições aplicadas à obra de Kafka, é uma subclassificação da literatura fantástica consentida, em que há uma ruptura com algo dos costumes usuais, que se alteram e assim beiram o absurdo e o surreal. É um fantástico consentido, pois o leitor está ciente da ruptura em questão.

Mas o flerte com o absurdo, falando em termos de arte, não se limita à literatura. É o que vemos no filme recém lançado “Para Roma, com Amor” (2012), dirigido e escrito por Woody Allen.

O próprio título do filme já traz embutido em si uma coisa: O que se espera de alguém que vai a Roma? Encontrar o amor? Experienciar e apreciar toda a aura romanesca da cidade? Vivenciar uma paixão fugaz?

Sair da realidade parece ser a ânsia de quem quer desfrutar uma cidade como Roma. É a busca de um “plus” no rescaldo de uma existência comum.

Mas aquilo que se espera de algo, limita a experiência, que por excelência seria experimentar, experienciar o diferente, o inesperado.

Um dos personagens do filme – personagem de Woody Allen – é um exemplar humano dos mais cômicos: O único homem com três ids!

O id é a instância da mente definida por Freud como sendo a parte mais próxima dos instintos, dos desejos irreprimíveis; a fonte de energia que funciona e se dirige para a obtenção de prazer e satisfações ilimitadas. Ora, se ele tem três ids, onde estarão o ego e o superego?

Deixo a resposta de lado para que os personagens do filme nos mostrem o que é romper com o cabível.

Tomemos como exemplo o personagem de Roberto Benigni – Leopoldo Pisanello – uma dessas pessoas chamadas “comuns”. Vive sua vida pacata, com seu emprego, sua mulher e filhos. Não aspira nada além de sua ventura cotidiana. Mas eis que a tentação agridoce da fama vem lhe aventar o espírito. Ele é levado à condição de celebridade instantânea assim que uma certa câmera e certos jornalistas o implicam no papel de alguém famoso. A fama pela fama.

Na estiagem de nossos desejos, o culto à celebridade é elevado a sua máxima potência. O filme representa bem isso. Hilário em seu papel, Leopoldo não entende como a exploração de seu dia a dia pode se tornar uma coisa tão importante para a mídia e para o público.

A questão óbvia é que ali não reside importância para um público. É importante tão somente para o ciclo autofágico da mídia atual, que se autofecunda e auto sustenta. É o que o filme dá a entender da visão perspicaz de seu criador, Woody Allen.

Woody, fazendo no filme o papel de um diretor de ópera, encontra em um agente funerário a possibilidade do sucesso – e da fama.

O personagem do agente funerário é um tenor em potencial, um homem comum que canta de forma fenomenal somente no chuveiro. Mas o diretor de ópera, depois de descobri-lo, não aceita que esse dom fique restrito ao círculo da família e das paredes amplificadoras do banheiro do agente.

Mais um caso de hipérbole cômica que Allen se utiliza para marcar o território do qual ele fala.

Mas voltemos a Leopoldo Pisanello. Leopoldo, com suas caras e bocas, lembrou-me um personagem de Kafka – do livro “O Processo” – que é processado por algo que não sabe, mas vai até as últimas consequências do processo, mesmo não entendendo porque continua a ir a todos os tribunais sem mesmo saber da necessidade real de a estes locais comparecer.

Já Leopoldo é investido de fama repentina sem entender o motivo.

Há aí um estranhamento provocado em cena e no espectador.

Uma das funções da literatura (se é que se pode dizer assim) é provocar o estranhamento. A de Kafka é assim, e o roteiro imaginado por Woody assim o é também.

O personagem Leopoldo sofre de um mal. O mal do não saber. “Vigie todas as casas, Ó Senhor, pois não sabemos quem pode entrar…”

Mas nós sabemos o que se passa. Há uma coerência encantadora.

A presença fantasmática do microfone (talvez mais um truque de Woody Allen), solto em cena, livre para o espectador vê-lo, está ali como um excesso, mesmo que à margem, daquilo que Woody tem a dizer. Nas cenas, o microfone fala. Assim como no caso da fama pela fama, nem todos que são colocados no posto de persona célebre têm algo a falar. A fama fala por si só. Então no caso do microfone – não sabemos se foi erro de projeção ou ato intencional de Woody, mas cabe aqui conjecturar – o microfone é que fala. Apesar de intruso, isso não altera em nada a coerência interna do filme.

Mas se fôssemos falar em forma, fama, e roteiro, diria que nossas vidas são objetos ficcionais. Vivemos em um roteiro não pré-determinado, numa rede, como um jogo. A vida como um jogo, como diria Heidegger. Segundo ele, não jogamos porque há jogos, mas o inverso: há jogos porque jogamos.

Mas não é possível sair deste jogo pelos fundos, como no cinema.

Este jogo que vivemos é autêntico e vira literatura.

No filme, o absurdo nos é apresentado às avessas. Num momento em que o ideário coletivo é da fama pela fama, ser um cidadão comum é uma ruptura do real. Ser comum é sair da realidade.

Evidentemente que a literatura – ou o cinema – tem seus artefatos linguísticos e limites que nos impedem de abraçar o jogo em sua completude.

Mas saltei da poltrona do cinema com a sensação de, por algumas horas, ter saído da realidade.

Num mundo de vontade e representação, Woody Allen nos convida a entrar em seu submundo e proclama a falência das coisas desimportantes.

Palmas à verdadeira Arte.

 
 
Caio Garrido.

Um comentário:

Anônimo disse...

Caio muito bom esse texto.

Escreve mais. Adoro ler teus textos.

Bjs