Pudemos
observar nas últimas semanas o desdobramento de um fato que ainda traz ressonâncias
na mídia e na arte: O “caso Isabella”. Recentemente, o espetáculo teatral
“Edifício London” da Cia de Teatro Os Satyros, escrito por Lucas
Arantes e dirigido por Fabrício
Castro, e que por ter sido influenciado pelo caso em sua expressão, teve sua estreia proibida na cidade de São
Paulo. Não fosse isso somente, a discussão se acalorou em torno da liberdade de
expressão e da censura em nosso país.
É legítima a
decisão judicial? É legítimo o desejo da mãe de Isabella buscar a iniciativa da busca de uma proibição?
O espaço ou
liberdade individual de Ana Carolina Oliveira, mãe de Isabella, já havia sido
invadido no momento em que Alexandre Nardoni entrou na sua vida, e não agora,
por uma peça teatral fazer algum tipo de referência ao acontecimento.
Seu lugar e seu
luto foram então violados pelas sucessivas abordagens que o mundo jornalístico
deu ao caso.
O que aconteceu
factualmente no crime? Quais explicações psicológicas vieram? O não saber é
angustiante por natureza.
Mas o apelo
jornalístico aponta sempre para o passado. A Arte tenta apontar para o futuro.
Entre fatos e
futuros não está o furo de reportagem. O furo jornalístico já vem furado por se
preencher e se alimentar de um impacto. Quando o impacto é grande, todos os
tipos de crateras submersas se revolvem, voltam à vida e se autorreproduzem,
criando versões, opiniões, construções imaginosas, podendo se distanciar da
verdade. A mídia se apropria então das versões com um grau de indecência que só
ela sabe, se utilizando de um sensacionalismo que vai das formas mais perversas
às mais sutis.
Como então
exigir da arte uma abordagem pura, se a mídia já dissecou e subverteu o caso?
Foi questionado
que a peça “Edifício London” tenha violado a liberdade ou espaço individual da
mãe de Isabella.
A liberdade
individual se dá no espaço social, à medida que esse espaço permite o ser político do ser humano. A
possibilidade de diálogo é a justa medida em que a liberdade de se expressar se
ajusta. A arte sempre aponta para um possível diálogo. Segundo a filósofa
política Hannah Arendt, “onde há política, há espaço público e onde há espaço
público, há diálogo; e onde há diálogo, há direitos”.
Entre vasculhar
a memória, livros, ou leis, só conseguimos chegar a um lugar que é do passado.
Está morto. Para elaborar a questão da liberdade de expressão e de sua censura,
um ato possível é utilizar a intuição. A intuição vem de um espaço que é de
onde surge o verdadeiro pensamento, o que traz o novo, a descoberta.
E foi isso que
a lei violou. A possibilidade do novo.
A Arte deve ser
disruptiva; Aquilo que inclusive pode romper com uma censura do psiquismo,
entre o que pode entrar e sair do inconsciente/consciente. E tudo que vem
romper com algo, geralmente é “censurado” de uma forma ou de outra. Não é
aceito de imediato. As maiores teorias sobre o humano – por exemplo a de Freud
– sofreram com a não aceitação imediata. A Arte não tem a obrigação de ser
provocadora, mas pode e deve provocar. A boa Arte é em algum sentido subversiva
e traz através da ficção, uma verdade. Se essa é a crítica em relação à peça,
então ela é “culpada”. E ao mesmo tempo um êxito.
Nesse ponto,
talvez a peça tenha mais verdade do que tudo o que se veiculou durante um bom
tempo no medíocre espaço “público” televisivo.
A peça teatral
em questão dialoga em favor da sociedade e não contra. Talvez a verdade seja um
tanto difícil de suportar. A verdade que subjaz sob os interesses e artimanhas
do psiquismo humano.
A Arte se serve
de metáforas, e talvez esses acontecimentos recentes poderiam servir como um
severo chacoalhão na sociedade coisificada, em que talvez seja necessária uma
urgente melhora no pensamento, na apreensão da arte e da vida.
Com essa
proibição, perdemos o melhor que poderíamos obter: A discussão sobre o objeto
artístico da peça, o humano e seus movimentos e mobilizações interiores. Eu
sei, porque tive oportunidade de ver. Esse é um outro problema da censura: Uma
longa discussão sobre o que não se viu.
Livro “Edifício
London”- http://www.editoracoruja.com.br/?l=livroview&livro=45
"Quando a realidade não da conta de
suplantar os mistérios, de esclarecer os motivos de determinados desvios
sociais, a arte busca preencher o vazio desse mistério com perguntas e soluções
possíveis. Discutir o papel da arte como crônica do seu tempo, expandido a
noção de notícia para uma perspectiva artística, descobrindo outras
possibilidades na mudança deste ponto de vista, permearam toda construção
ficcional, lançando novas luzes sobre a realidade ao trazer a reflexão da mesma
de uma maneira estética. Os noticiários nos atingem de forma agressiva e falta
tempo para digerir tantas informações. Com isso, todas as notícias se tornam
superficiais e se mostram incapazes de atribuir novos significados à realidade,
sendo esta, impossível de ser conhecida completamente. Na escrita deste
espetáculo, não houve a necessidade de assemelhar-se com o real, mas sim buscar
uma simulação para instaurar a dúvida sobre o princípio de realidade.
Pretende-se ultrapassar o efeito do real, criando, por meio da interseção entre
o sonho e a realidade, uma terceira dimensão. Uma peça de teatro escrita será
sempre diferente da transfiguração das mesmas palavras para o palco. A cena tem
uma urgência do seu tempo e de outros criadores com seus tempos. O espetáculo
se justifica por ele mesmo. O texto também se justifica, mesmo que
isoladamente. Um texto de teatro terá sempre as suas grandezas e equívocos,
assim como um espetáculo teatral. Por isso ambos dialogam e se completam. Por
isso a necessidade de se publicar uma peça de teatro. E também de sua
encenação" - Lucas Arantes