As moiras - Uma leitura
por Caio Garrido
Ensaboado de pedras. Puxado por mil arames em farpas desfiando-se pelo
ritmo aparentemente inocente de um nascimento, cujas vísceras nunca mais serão
as mesmas. Marcas ficaram. Mas mais do que marcas, partes dessas vísceras nunca
mais poderão sentir, e se ressentirão por isso sem saber.
Todo parto é uma benção aparente. Que é dessas coisas que mal sabemos e
não nos lembramos as que mais nos influenciam.
Poderíamos dizer que, com esse tom nasce a obra "As moiras",
segundo livro do jornalista e escritor Renato Essenfelder. Ou será escritor e
jornalista? Prefiro a segunda opção. Pra ser um grande jornalista (da verve dos
escribas), há de passar pelo crivo da boa escrita. E Renato atravessa por entre
as frestas dessas passagens estreitas com o "Parto", narrativa que
abre o livro, iniciando de forma poética o ambicioso projeto de narrar a vida
cotidiana a partir de um terceiro olho vindo dos invisíveis fios da mitologia
que articulam a vida humana como conhecemos (e que de certa forma preferimos
desconhecer).
À medida que o livro nasce e cresce, vai abarcando o mundo, através das
escalas mais ínfimas ou do olhar mais amplo vindo das Moiras, as irmãs que
fabricam, tecem, e desatam os fios da vida a seu bel prazer. O mundo visto do
ponto de vista infantil ainda pode ser belo, o da mulher desamparada pode ser
árido ou possivelmente fértil, o do homem, sempre febril, com seu verdadeiro
amor e mulher para sempre perdidos. O homem ainda se descobre nômade, mas
muitas vezes perdido em sua própria casa, cidade ou sonho.
Os contos de Renato, vistos de frente são uma articulação do passado, de
memórias que impedem o porvir. De trás, nos mostram a direção para um futuro
sombrio, inescapável, frio como os dias que passam e perfilam melancólicos.
Quando vislumbrados em perfil, seus contos se mostram num tom poético como até
então não vistos em tais proporções em suas crônicas ou em seu romance.
Cinzentos, os dias após dias – repetições das mesmas certezas
descoloridas – (retratados nos subsequentes temas de seus contos-poemas),
antecipam o fracasso do final (pois o passado nunca volta, só o brutal corte desse passado que é dolorosamente
atualizado e relembrado), e escondem-se sob as vestes moldadas pelos mitos (que
controlam os "clep-cleps"
de nossas sandálias gastas ao chão, como bem falam os contos de Renato), que
também escondidos sob as vestes de contos, não deixam de exalar o odor de sua
verdadeira natureza: A poesia. Ela, a poesia, também acostumada em revelar o cavafundo orgânico de nossa imagem
pseudo-moderna.
A vida existe como tragédia ou como fortuna? Um Destino de privação? Ou
privação de sentidos? Provação? Iniciação? Privação do poético da vida, que só
a alguns, escolhidos, é permitida a visão?
Pois se destacam essas visões e questões a nos pairar ao final da
leitura.
A vida faz uma pergunta ao nascermos, já disse o psicanalista Erich
Fromm. E espera uma resposta de nós. Ao homem, "cumpre-lhe viver sua
vida", e não ser vivido por ela.
As moiras, amalucadas e ainda moças moiras, não anunciam, mas
secretamente esperam respostas.
É a vida que se rebela contra nós, ou nós que em vão nos rebelamos
contra ela?
O que você quer escolher?
A sorte está lançada.